O massacre de Corumbiara, no qual dez sem-terra e dois policiais militares morreram - embora os sem-terra falem em até 40 mortos -, é uma história pouco conhecida da maioria dos brasileiros, O resultado, porém, indica que, como nos massacres do Contestado, Canudos, Carandiru e Carajás, o aparato militar estatal agiu com excesso de truculência e despreparo.
O conflito ocorreu na fazenda Santa Elina, que possuía 20 mil hectares e era considerada devoluta (terra pública, tomada por terceiros, em processo de devolução ao Estado). A área havia sido ocupada por mais de 600 famílias sem-terra 23 dias antes do massacre. Na versão de Claudemir, a matança foi ordenada por fazendeiros da região, que viam no sucesso da empreitada dos sem-terra um exemplo capaz de incentivar outras ocupações.
A violência adotada pela polícia, na avaliação do entrevistado, foi motivada por vingança. Dias antes do massacre, durante uma tentativa de reintegração, os camponeses, armados com espingardas de caça, foices e motosserras, teriam forçado cerca de 20 PMs a se renderem, após um sem-terra ter sido atingido nas costas por um tiro disparado por um policial.
“Não somos hipócritas, não. A gente tinha espingarda de caça, ferramentas de trabalho, foice... A gente tinha um grupo de vigília também. As armas que tínhamos foram distribuídas em um grupo de 150 homens que faziam a vigília para não receber ataques dos pistoleiros. Isso foi a salvação para não morrer mais gente antes do massacre”, diz.
Os PMs foram liberados pelos sem-terra, mas, depois do episódio, intensificaram a perseguição e as provocações aos acampados, que ocorriam desde o início da ocupação, segundo Claudemir. Em paralelo, uma comissão de negociação formada por representantes do governo do Estado, Incra (Instituto de Colonização e Reforma Agrária) e parlamentares petistas de Rondônia tentava encontrar um final justo para a ocupação.
As intenções da comissão foram em vão. Claudemir afirma que na tarde de 8 de agosto dois policiais, aparentemente com boa vontade, foram até o acampamento com uma proposta vantajosa aos acampados. Empolgados, os sem-terra chegaram até a comemorar, acreditando que a terra seria desapropriada e entregue a eles.
De acordo com Claudemir, porém, a aparente disposição dos policiais era despiste para o ataque. “Eles trapacearam, nos iludiram”, afirmou. Por volta de 2h do dia 9, os sem-terra acordaram com uma chuva de balas sobre o acampamento, que havia sido montado sob a copa de árvores altas. Os camponeses revidaram os disparos, e o tiroteio terminou por volta de 7h, quando a munição dos sem-terra acabou.
A partir daí, os quase 200 policiais militares, encapuzados ou com os rostos pintados, auxiliados, segundo Claudemir, por mais de 400 pistoleiros que estariam vestidos com fardas da polícia, invadiram o acampamento, destruíram os barracos e iniciaram as torturas e execuções contra os sem-terra. Uma das torturas consistia em obrigar os filhos dos camponeses pisotearem os pais, que estavam deitados no chão.
“A gente ficou de bruços no chão. Quem olhasse para cima, tomava tiro na nuca. As crianças eles colocaram para correr em cima dos adultos. Inclusive, nessa ação mataram a menina Vanessa, de seis anos, porque ela saiu correndo, como se fosse fugir, e um fardado atirou nas costas dela. Essa cena eu vi. A criança morreu nos braços da mãe”, diz Claudemir, conhecido na região também como Pantera.
“Eu apanhei muito. Fui muito torturado. Eles cortaram minha orelha com baioneta de fuzil. Meus dentes da frente foram todos quebrados. A última cena que eu vi foi minha mãe gritando ‘não mate meu filho’ e um fardado colocando a arma dentro da boca dela. Aí eu recebi uma paulada na cabeça e só fui acordar no hospital.”
Segundo Claudemir, seus companheiros lhe relataram que seu corpo fora jogado dentro de um caminhão, onde os mortos estavam depositados, e levado até o necrotério de Colorado do Oeste (RO). Lá, ele teria sido salvo por representantes da Igreja e da CUT (Central Única dos Trabalhadores), que acompanhavam os desdobramentos do massacre.
De lá, Claudemir foi levado para o hospital de Vilhena (RO), onde relata que quase foi morto duas vezes por policiais. À época, o camponês, que estava em uma cadeira de rodas, consequência das torturas que sofreu em Corumbiara, viajou para São Paulo, onde foi tratado no Hospital das Clínicas, e começou sua fuga, ajudado por sindicalistas.
Na primeira visita à Rondônia após o massacre, em 1996, Claudemir conta que sofreu uma tentativa de homicídio quando trafegava por uma estrada com sua moto. O atirador errou o alvo, mas ao camponês valeu como aviso de que não era seguro ficar no Estado.
Enquanto fugia dos pistoleiros viajando pelo Brasil, Claudemir teve uma “companheira”, com a qual teve duas filhas, uma com nove anos e outra com 13. A mulher, no entanto, não suportou a pressão da vida clandestina.
“Eu tive desavença com a minha ex-esposa e a gente se separou, mas também foi consequência da luta. A perseguição é demais. Não é fácil para uma mulher ter estrutura para aguentar a perseguição. Hoje eu tenho uma nova companheira, mas estou vendo que uma hora vou perdê-la. Eu quero construir minha vida, minha família, eu não sou bandido. Mas não é fácil”, afirma.